domingo, 24 de junho de 2012

Edição 37





MIL PÁSSAROS CANTANDO (crônica)

Silveira de Souza

Você já acordou de madrugada e escutou mil pássaros cantando?
Pardais, sabiás, canários da telha, rolinhas, corruíras, bem-te-vis? Eles
todos, e ainda outros, em algazarra, nos primeiros sinais da manhã, fazendo
uma festa em torno de sua casa, na qual você (se estiver consciente) é
apenas um encantado e humilde espectador? Pois ontem presenciei tal
espetáculo!

Foi pela madrugada. Eu havia acordado, ao contrário de muita gente,
com aquela angústia de quem não sabe nada sobre a sua vida; de quem não
sabe nada, como num conto de Kafka, da sua situação neste mundo, nesta
cidade, na cama sobre a qual me encontrava. Então percebi que eles todos
estavam cantando – como se diz? – a plenos pulmões, mesmo sabendo que
se tratava de diminutos e delicados pulmões de passarinhos. Eu despertei
sem saber o que fazer, então os meus ouvidos ficaram atentos para aquele
inigualável espetáculo, tão antigo e banal, tão novo e surpreendente.
Os pássaros cantavam, por certo não eram mil – ora, que exagero!
Talvez nem chegassem a cem. Mas o canto deles me chamava à vida. Não
que a vida seja algo extraordinário para nós, habituados a ela, mas é que
ela é o contrário da morte. A morte é o buraco escuro na tua frente, é o
cinzento, é o deixar tudo como está. É o fim da luz. A vida é contrariar o
mundo, é fazer as coisas erradas, é o morrer na cruz. Só os vivos morrem
na cruz.

Que música tão singular é essa quando se está imerso no alvoroço
dos pássaros? O sabiá tem perícias de artista. Acorde único é o seu canto,
que se repete em variações tonais; brejeira, grave melodia de flautinha de
bambu. O sabiá, no seu meio, é um esteta. O pardal, sempre abrupto, é um
roqueiro suburbano, inepto e barulhento. Já o canário da telha trança o seu
traçado discreto, harpejo em ziguezague, áspero, mas correto, no alto do
poste de iluminação pública, em consonância com as suas penas amarelo-
queimado de estrias pardas. E a rolinha, o que ela faz? Parece assustada:
hu-u, hu-u, hu-u! E que espalhafato é esse do bem-te-vi, grito estridente
e espalhado, como um bêbado histérico fazendo escarcéu na casa ou
fagulhas de fogos de artifício se multiplicando no ar, por fim decrescendo
para um ti-vi, ti-vi, ti-vi mais comportado? Mas não são os indivíduos
que impressionam. É todo o conjunto orquestral, a variedade de trinados,
assobios e gritos (que às vezes parecem miados), entremeados por um tril-
li-li, tril-li-li, tril-lili, compassado, persistente, enigmático e um estranho
tssiu, tssiu, tssiu a sussurrar quase inaudível, oculto na espessa folhagem de

alguma árvore.

Sempre encontrei um significado especial nessas coisas pra lá de
corriqueiras. Bem comparando, são elas como algo bonito que a gente
julgava perdido para sempre (aquela ferroada melancólica escondida no
coração), mas que de repente, em momentos inesperados, sempre em
momentos inesperados, surge de novo pra te avisar que tudo pode estar
bem. Como quando, nos meus tempos de garoto, ao acordar inquieto
pelas manhãs, de repente ouvia aquela voz gritando lá fora na rua: “Olha
a laranja lima! Olha o caju! Olha o araçá! Olha a banana ouro!” E então,
depois disso, a manhã se enchia de sol.

Posso ser, e sem dúvida o sou, para quem está ao redor, um cara sem
importância (que nunca soube exatamente o significado da importância)
e que vive num país que talvez até já tenha acabado e diante de um
mundo que embaralhou todos os significados. Entretanto, escutar pássaros
cantando na ressaca de uma repentina madrugada para mim representou
uma importante revelação. Eles soltavam livres o seu canto, cada espécie
cantando a música que aprendera, livre, sem inveja dos outros cantos, sem
disputar entre eles quem cantava melhor. E isto foi como fazer a óbvia
descoberta de que existe alguma coisa decisiva acima do que você já sabe.
Ou reconhecer que o céu, na maioria das vezes, estará escuro, até que você
aprenda a contemplar as coisas com um olhar interior. Esse interior que
é, no dizer de Antonin Artaud, “germinação, idéia, linguagem, levitação,
sonho”, quando a gente então renuncia às formas e fica a espera só do
vento.



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NOVÍSSIMOS

Quem pela vida passa
Sem aproveitar o tempo
Fica levitando no ar
Com o sussurrar do vento.

(Francisco Pinheiro - Troféu Manezinho da Ilha/2012)


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CINEMA DE GRAÇA PARA ALUNOS

Escolas públicas e particulares da Grande Florianópolis já podem fazer as inscrições de turmas de alunos para a 11ª Mostra de cinema Infantil de Florianópolis, que ocorre no Teatro Pedro Ivo Campos de 29 de junho a 15 de julho. Professores interessados em levar seus alunos gratuitamente para as sessões de cinema devem enviar e-mail para agendamento@mostradecinemainfantil.com.br, que a produção solicitará as informações necessárias. Mais informações com Ana Lucia Fernandez pelo fone (48) 9108-8048.





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URDA KLUEGER

A escritora Urda Alice Klueger inovou mais uma vez. Programou o lançamento de seu novo livro simplesmente para o dia dos namorados. Das 15 às 18 horas do dia 12, a escritora que também é membro da Academia Catarinense de Letras, ficou à disposição de seu público leitor para autografar a coletânea de suas melhores crônicas intitulada “Trinados para o meu passarinho”.
O livro é mais uma edição da Editora Hemisfério Sul, da própria autora que, nos convites encaminhados utilizou a seguinte frase: “Presenteie a quem você ama com um livro que fale de amor”.
Parabéns em dobro, querida amiga: pelo livro em si e pela inovação.



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MEMORIAL MEYER  FILHO 2011 E PROJETO 3 PERGUNTAS.


No dia 30 de maio de 2012, o Instituto Meyer Filho lançou o catálogo “Memorial Meyer Filho 2011”, contendo textos e imagens das exposições: A extensão das coisas; Chassis Ajardinados; Chifre coberto de carne; Entre a palavra pênsil e a escuta porosa; Inverso; Lugar; Natureza da/na Arte e Natureza Faminta. Na ocasião também foi lançado o projeto “3Perguntas”, idealizado junto à artista Raquel Stolf.

A seleção composta pelas exposições “A extensão das coisas”, “Entre a palavra pênsil e a escuta porosa”, “Inverso”, “Natureza da/na arte” e “Natureza faminta”  foi aprovada pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Florianópolis e patrocinada pelo Costão do Santinho Resort. Já as exposições “Chassis ajardinados”, “Chifre coberto de carne” e “Lugar” foram realizadas pelo Instituto Meyer Filho em parceria com os próprios artistas e/ou curadores. O catálogo foi organizado por Kamilla Nunes, também curadora do programa de exposições. A agenda de exposições do MMF intermediou gerações e fronteiras, ao invés de buscar um tema em comum entre as exposições. A preocupação em abrir o Memorial Meyer Filho para diversas gerações é importante para que ele não se torne um espaço de um grupo determinado de artistas mas, pelo contrário, possibilite contaminações, trocas e interlocuções entre vários grupos, dos artistas consagrados aos aspirantes e recém formados. Evitar a predominância de uma única linguagem foi também um dos propósitos, pois o Memorial não é um espaço de fotografia, ou de desenho, ou de instalação ou de novas mídias, mas um local que busca abrigar a arte nas suas mais variadas formas de suporte.

Serão suspensas, por tempo indeterminado, todas as exposições que viriam a ser realizadas no Memorial Meyer Filho em 2012. Este espaço irá contribuir de forma efetiva para a rede de debates e ações que já estão acontecendo em Santa Catarina, acerca de políticas culturais, de políticas públicas, de arte. Enquanto artistas se unem em frente às secretarias regionais, enquanto críticos de arte, jornalistas e escritores publicam nos jornais para acordar o Governador em relação ao atual estado da cultura, o Memorial Meyer Filho tornará seu espaço expositivo em um local de debates, de produção de conhecimento, de agrupamento de agentes culturais, artistas, professores, autoridades, diretores de museus e demais interessados, que possam vir a contribuir com perguntas e possíveis respostas e ações. Assim, “3Perguntas” é um projeto que consistirá numa conversa que possuirá três eixos de vozes: o público, um convidado que participou da agenda do MMF (2009 a 2012) e um convidado externo. Propõe dar visibilidade ao que o MMF já construiu e escutar o que está por vir, suscitando reflexões críticas dentro do contexto artístico, cultural e político de Santa Catarina. Funcionará como uma rede de questões a serem lançadas, com uma programação que será amplamente divulgada.



                                 
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 CONFRARIA DO POEMA


A flacidez muscular
Da retina
Revolve os dejetos.
Pálpebras descoloridas
calam tua boca
vermelha carmim,
esquecida
canto do olho.


Passam-se os anos
A vida esco(l)a
Entre esquálidos dedos.
Procuro vaidades
Esqueço verdades.
Ampulheta,
Hediondo marcador.

(Pinheiro Neto, Cena 2011-2, Poemas à flor da pele, p. 339)